Vamos Abraçar o Hardware Livre
O Brasil abraçou o software livre e isto foi fundamental para nos posicionarmos de maneira mais relevante no mundo digital. Uma nova onda…
O Brasil abraçou o software livre e isto foi fundamental para nos posicionarmos de maneira mais relevante no mundo digital. Uma nova onda está surgindo com a chegada do hardware livre e parece que não estamos tão preparados para ela.
Há mais ou menos uma década e meia, um dos principais ativistas da liberdade do software, um dos pais do GNU/Linux e fundador da Free Software Foundation, o americano Richard Stallman, escreveu num artigo que ele “não via vital importância social para designs de hardware livre como ele via para o software livre”. E a razão era bem simples e bastante sólida. Se por um lado para trabalhar com software — assumindo que o código fonte e as ferramentas de desenvolvimento estejam disponíveis na rede — tudo que alguém necessita é de um computador, quando falamos de hardware a coisa já não é bem assim. E, por isto, o impacto social do software livre, que pode ser fácil e perfeitamente replicado e distribuído com custos marginais, é gigantesco. Na mesma linha de raciocínio, o impacto de designs de hardware livre seriam bem limitados pois não é qualquer pessoa com um computador que pode fazer uso dele, você precisa de peças, conhecimentos específicos e várias outras camadas de insumos e informações. Mas antes de aprofundarmos sobre este tema, é fundamental entendermos o que queremos dizer quando usamos o termo “livre” neste contexto. Não estamos falando de custos associados ou não ao design em questão, mas sim da liberdade de utilizar, copiar e modificar o design de acordo com nossos desejos e necessidades.
Quando falamos de designs de hardware temos que lidar com pelo menos sete camadas de insumos: o diagrama elétrico, o esquema da placa de circuito impresso, a lista de componentes, os componentes propriamente ditos, o firmware de determinados componentes como microcontroladores, o software específico da aplicação em questão e também o design mecânico do dispositivo. É notável que estamos lidando com uma complexidade maior e com a inviabilidade da duplicação com custos marginais ou até mesmo com a impossibilidade de construção. Porém, nos últimos anos, este cenário está mudando de maneira drástica com a evolução tecnológica e com a digitalização e popularização de técnicas e ferramentas necessárias para o design e construção de dispositivos de hardware.
O design dos circuitos e da parte mecânica sofre um processo profundo de digitalização através de ferramentas de desenho assistido por computador — CAD — cada vez mais simples e acessíveis. Com isto, manipular designs abertos de hardware torna-se uma realidade cada vez mais banal. Hoje você pode baixar gratuitamente ferramentas para este tipo de desenho, aprender a usá-las com vídeos do YouTube e consultar uma vasta biblioteca de projetos disponibilizados com licenças bem flexíveis na rede. Até pouco tempo atrás, este tipo de atividade era restrita a fábricas, laboratórios e instituições de ensino e pesquisa que dispunham de muitos recursos financeiros e humanos. Hoje, adolescentes do mundo todo baixam, alteram, criam e compartilham designs de hardware na Internet utilizando ferramentas como Fritzing, 123D Design e 123D Circuits e plataformas como o GitHub, Instructables e Thingverse. O software, incluindo o firmware, é uma questão já resolvida desde a surgimento do software livre.
O que resta é o acesso aos componentes e a fabricação dos dispositivos propriamente ditos. Mas isto também está, aos poucos, cada vez mais resolvido, acessível e barato. Componentes estão cada vez mais baratos graças aos efeitos econômicos do crescimento gigantesco da demanda por eles e também devido aos efeitos exponenciais da evolução tecnológica que entrega cada vez mais capacidade com menos custos. Com isto, microcontroladores e sensores bastante poderosos para controlarem drones, robôs, coisas conectadas e quase tudo que a imaginação criar ficam acessíveis para os projetistas. E, ao mesmo tempo, técnicas e equipamentos de fabricação digital como impressoras 3D, fresas CNC e máquinas de corte a laser chegam às escolas, aos laboratórios comunitários e até mesmo às mesas destes entusiastas. Com isto, mesmo que não tem lá todas as habilidades manuais para construir uma peça ou uma placa de circuito impresso, passa a ser capaz de fazê-las como se dotado de capacidade sobre-humana ao clique do mouse. Se o dispositivo precisa ser produzido em escala industrial, os designs podem voar na velocidade da luz pela rede, chegarem a prestadores de serviços de fabricação na China e serem produzidos de um dia para o outro. Enfim, o hardware livre é, de fato, uma possibilidade bastante real e transformadora.
Sem exigir muito da imaginação, é fácil olharmos para o impacto do software livre no mundo atual com a Internet e a Web, e imaginarmos que o hardware pode ter um impacto ainda maior. Porém, não vejo o Brasil abraçando esta causa como fizemos com o software livre — inclusive nas esferas de governo — e lutando para que barreiras como políticas fiscais e de importação absurdas garantam a nossos desenvolvedores o acesso às ferramentas e componentes necessários para que façamos parte desta revolução. É hora de lutarmos pela liberdade do hardware!
Artigo publicado originalmente na edição de Setembro de 2014 da Revista INFO e republicado aqui com a permissão da Editora Abril.