Cyberpunk é logo ali
Posso afirmar que nada desse cenário foi tirado de previsões do futuro ou livros de ficção científica. Cyberpunk é aqui e agora.
Posso afirmar que nada desse cenário foi tirado de previsões do futuro ou livros de ficção científica. Cyberpunk é aqui e agora.
“Faltam alguns dias para o Natal e a expectativa pela chegada dos pacotes não para de crescer. Todos os dias, verifico se pacotes foram entregues. Para passar o tempo, coordeno detalhes das atividades do feriado com o grupo de amigos através de uma plataforma de mensagens peer-to-peer com criptografia de nível militar. No Twitter, recebo novidades das atividades dos dias anteriores. Reconheço alguns arrobas que são sempre citados no grupo, mas paro para pensar que falo com alguns deles há meses e não sei como são seus rostos. Uma das regras básicas do grupo é a de evitar ser identificado. Nada de fotos e outros rastros biométricos, nada de informações pessoais, GPS sempre desligado, navegação através da rede Tor e com total paranoia para metadados que possam ser divulgados inadvertidamente.
O interfone toca. Meu coração acelera um pouco e fico apreensivo. Olho pela janela buscando sinais de atividades suspeitas. Nada. Entro nos grupos e no Twitter e também não vejo nada de estranho. Atendo ao interfone e, em meio aquele chiado analógico, reconheço a voz do porteiro dizendo que uma pessoa deixou um pacote para mim. Antes de sair, olho mais uma vez as notificações no celular e verifico pelo olho mágico se está tudo tranquilo. Desço correndo pelas escadas, pego os pacotes e subo novamente. Me esquivo de meus primos mais novos que estavam na sala e me tranco no quarto.
Com um estilete retiro camadas de papel que envolviam tudo. Logo encontro um envelope preso com fita no visor de um máscara antigás. Dentro dele apenas um pedaço de papel com um QR Code e um número. Pego o celular, abro minha carteira de criptomoedas, escaneio o QR Code, digito o número e clico no botão enviar. Não respiro até receber uma notificação indicando que a transação havia sido confirmada pela rede. 0,021 bitcoins, mais ou menos US$ 150. Coloco a máscara na mochila e sigo desempacotando os outros itens. Dois apontadores laser verde, alguns iluminadores com LEDs infravermelhos e um walkie-talkie.
Jogo tudo na mochila e me preparo para sair. Checo o celular novamente e, desta vez, uma mensagem no grupo alerta sobre um novo sistema de identificação baseado em assinaturas térmicas. A recomendação é usar roupas térmicas ou se cobrir com um cobertor de emergência.”
Essa história, que parece saída de um livro de ficção científica distópico, pode estar se passando neste exato momento. Se o personagem é um pintor preocupado em não ser identificado para se livrar de anúncios direcionados, um ativista se preparando para se juntar a um protesto ou uma adolescente participando de uma espécie de pique esconde futurista, não sei dizer. Mas posso afirmar que nada desse cenário foi tirado de previsões do futuro ou livros de ficção científica. Cyberpunk é aqui e agora.
Logoff.
Artigo publicado originalmente na coluna do Manoel Lemos na edição de 27 de Novembro de 2019 do Estadão e republicado aqui com a autorização do mesmo. Clique aqui para ler o artigo original.